Ligar Lisboa a Bissau em viatura própria custa cada vez menos. Neste momento já existe alcatrão entre as duas cidades, o que torna a jornada mais fácil, rápida e agradável… mas menos épica. Acabaram-se as dunas, os vazar e encher pneus… Acabou-se o medo de ficar atascado nas areias poeirentas do Sahara, entre camelos e tufos de erva!
Cinco dias de viagem (menos um que há dois anos) e 5000 km feitos [mais que o normal, à conta dos camelos do Senegal (autoridade aduaneiras, leia-se), que nos obrigaram a contornar a Gâmbia].
São algumas das fotos da viagem de regresso que aqui ficam, para aguçar apetites, agora que vir a Bissau é um pequeno passeio, para quem está na Europa.
ALCATRÃO SEM FIM. Desenganem-se aqueles que pensam que as grandes etapas da viagem estão na África (dita) negra. Atravessar Marrocos e o Sahara Ocidental é a principal canseira (2700 km). Do posto fronteiriço da Mauritânia a Bissau é um pulinho.
SEUS CAMELOS! As montanhas do (que creio ser o) Anti-Atlas (entre Marraquexe a Agadir) custam a fazer. Mas travar um veículo embalado nas rectas do Sahara a 120 km/h por causa destes simpáticos bichinhos também dá trabalho. Ultrapassados os obstáculos há a grata satisfação de poder meter a cabeça de fora da janela e gritar (sem que ninguém se sinta ofendido): SAIAM DA FRENTE SEUS CAMELOS. Na segunda circular, em Lisboa, não se pode fazer tal coisa!
COÇAR COCEIRA. Se é pulga ou carraça não sei, mas lá que o bicho é inteligente, isso não nego. Numa terra sem árvores ou outras coisas onde um animal possa aliviar comichões, os sinais de trânsito servem para muito muito mais que elucidar automobilistas. Quantos quilómetros fará, em média, um camelo para se aliviar da coceira? Problema para responder na próxima viagem.
ILHA CONTINENTAL. Celebrizada por Saint-Exupery em “Terra dos Homens”, Tarfaya revela-se como o piloto-escritor a descreveu: encravada entre as dunas e o mar. A sensação que se tem, quando aqui se chega, é que estamos numa ilha. Não numa ilha marítima, como são todas as ilhas, mas numa ilha terrestre. Explique-se. Tarfaya fica distante de tudo, na última curva antes do fim do mundo. O deserto é a única coisa que lhe está perto. E o mar! Tudo o mais fica para lá de muito longe daqui.
As cidades mais próximas estão a muitas centenas de quilómetros e a única forma de sair é via terrestre, que no aeroporto não pousam pássaros de ferro. Horas e horas de alcatrão para ir visitar família, tratar de um documento, ver um filme!!...
As casas pobres da vila sobrevivem, periclitantes, aos ventos fortes, que as fustigam todo o ano, e aos grãos de areia do Sahara que as ameaçam sepultar para sempre no escuro de uma duna. Tarfaya tem duas coisas para ver: as cores mortas que compõem a cidade (o cinzento, do cimento das casas, o amarelo, da areia do deserto e da praia e o azul baço do mar, que aqui é mais triste que em todos os outros locais do mundo); e o Museu Antoine Saint-Exupery, aberto há pouco tempo com o intuito de atrair os turistas que passam na grande estrada que corre para Sul, a 2 quilómetros. Tudo isto faz de Tarfaya uma cidade desconsolada, infeliz no seu isolamento, mas ao mesmo tempo fascinante. Talvez um ano aqui venha passar férias.
KIT-SURFANDO EM DAHKLA, cidade mais a sul (e a mais bonita) no Sahara Ocidental. Um óptimo spot para a prática desta modalidade. Vento constante todo o ano, a toda a hora. Nas praias de Dahkla batem-se franceses, holandeses, alemães... que viajam de carro, desde os seus países, apenas para praticar este desporto.
UM DO MELHORES PAÍSES DO MUNDO. Às vezes apetece-me escrever que a Mauritânia é o país do mundo onde melhor me sinto. Mas depois vêm-me à cabeça os três países onde já fui/ainda sou feliz (Alentejo, Moçambique e Guiné-Bissau) e desisto dessa ideia para não ser injusto. Na Mauritânia o estrangeiro sente-se em casa. É levado em ombros (sem que os pés saiam do chão). A famigerada hospitalidade dos povos do deserto sente-se aqui. No ar que respiramos, na comida que comemos, nas palavras que ouvimos. Nos gestos que recebemos.
A talhe de foice aproveito para dissertar um pouco sobre a diferença de postura das autoridades com que me tenho cruzado ao longo destes anos de viagens. E concluo que (no geral, em todo o mundo há excepções à regra) a postura varia consoante estamos na África do norte (magrebe) ou na África (dita) negra. Enquanto em Marrocos, Sahara Ocidental e norte da Mauritânia o estrangeiro é olhado sob o prisma de “este é turista, vamos tratá-lo bem para ele promover a nossa terra e voltar”; no Senegal, sul da Mauritânia, Mali, Guiné-Bissau, Moçambique, Zimbabué, etc… a lógica inverte-se: “este é turista, traz dinheiro, vamos explorá-lo que o gajo é rico”. E vá de moer a cabeça à gente, até encontrarem um documento em falta, um atacador desapertado, um pisca que não funciona, um esguicho de limpa pára-brisas entupido…
DUNAS À BEIRA-ESTRADA. Nas terras do litoral sobe-se às dunas para ver e ouvir o mar. Na Mauritânia os pastores do deserto sobem às dunas para ver e ouvir os carros que passam. Eles são o progresso que os hão-de, um dia, livrar da seca e transportar para a cidade grande, lá onde a água não falta.
Como já referi, Bissau e Lisboa estão cada vez mais próximas. A estrada que liga Noackchott a Nouadhibou veio encurtar em muito a viagem. Na foto, o enchimento da emblemática garrafa de areia do Sahara para satisfazer os pedidos dos amigos. Qual será o impacto de gestos como estes no ecossistema do Sahara? Vou perguntar aos ecologistas.
E NOAKCHOTT SURGIU DAS AREIAS. Para quem a visita pela primeira vez Noakchott, capital da Mauritânia, é feia, suja, desorganizada. É preciso voltar aqui para se entender uma cidade que, apesar de estar a dois passos do mar, vive de costas voltadas para ele, virada sobretudo para o deserto. A exposição de fotos que vi no Centro Cultural Francês ajudou-me a perceber porque é Noakchott (e outras cidades da Mauritânia e do Sahara Ocidental, também construídas entre o Atlântico e o Sahara) tão intensa: está (estão) edificada(s) entre dois dos maiores espantos da natureza: o mar e o deserto.
As fotos acima são reproduções das fotografias expostas por Jonathan Shadid no Centro Cultural Francês de Noakchott até 30 de Setembro. A mostra intitula-se “E Noakchott surgiu das areias”.
PARA MAIS TARDE RECORDAR. Com a Cláudia, co-piloto nas horas de espertina e piloto nas horas em que a pestana teimava em fechar. Falta a segunda co-piloto, que tirou esta foto. Refira-se que viajar com duas mulheres por países muçulmanos torna-se muito cómodo, pois nas fronteiras e nos inúmeros check-points podemos argumentar, depois de um SALAM ALEIKUM bem pronunciado, que temos que seguir depressa, porque as mulheres estão no carro a apanhar calor! Os meus pedidos foram sempre tidos em alta consideração. Excepto no Senegal, onde o respeito, por parte dos agentes de autoridade, só existe depois de uns bons francos CFA serem batidos sobre a mesa. Repito o que já escrevi dezenas de vezes: o Senegal é um péssimo país para se ser turista.
17.9.06
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1 comentário:
OLÁ
Também eu nascida e criada em Moçambique, gosto de ler sobre pessoas que têm a experiência de viajar por outras terras de África.
Só assim eu as entendo e elas me entendem...temos que passar por isto tudo para nos podermos entender mutuamente, noto que se falar com alguém que nunca foi para estes lugares, a conversa não é tão interessante.
Estive há 3 semanas em Agadir e fui visitar Marraquexe, de autocarro. Realmente é como dizes:
As montanhas do Anti-Atlas (entre Marraquexe a Agadir) custam a fazer.
Mas é uma viagem linda, no aspecto da beleza dos locais por onde passamos, refiro-me: natureza.
Iria adorar ver essas fotografias expostas por Jonathan Shadid, cá em Portugal.
Beijo moçambicano.
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