Revisito de tempos a tempos o teu/nosso Africanidades, as tuas vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África visto, sentido, cheirado, apalpado, (red)escrito, fotografado, amado por um grande português do pós-império, meridional, global...
Olha, em troca, deixo-te aqui um poema, uma lengalenga que um dia ouvi a um barqueiro do Geba. Não sei fula, nem mandinga, nem balanta. Mas a língua dos barqueiros não difere de rio para rio, do Geba ao Tejo, e até ao rio da nossa aldeia.
Ao Jorge e ao todos os portugueses errantes, de ontem, de hoje e de amanhã. A todos os barqueiros do mundo. E, por fim, ao senhor barqueiro de Caronte para que, quando nos levar,de vez, na sua barca, nos leve com cuidado, com jeito, não já a gente... acordar.
Conto(s) do barqueiro do Geba
Um homem passa o rio, a nado. Um homem atravessa a ponte sobre o rio. Um homem cai ao rio, baleado.
Há uma piroga no tarrafo. Metralhada. E flamingos brancos, tingidos de vermelho.
Um homem pensa na jigajoga da vida e da morte. Um homem olha-se ao espelho. Um homem porfia, e nem sempre alcança. Um homem tem uma crise, de confiança.
Um homem do norte camba o rio. A sul. A vau. O Geba Estreito. Que a última coisa a perder é a esperança.
Um homem desenha uma ponte, imaginária, entre dois pontos de cambança. Um homem põe-se a pau, a caminho do Mato Cão. O inferno em frente, o rio serpente, e Lisboa ali tão longe, tão azul, tão gregária. Lisboa, o cais de Alcântara, uma multidão de pontos negros, outra ponte, outro rio, saudades a mais. Um nó na garganta.
Um homem do norte faz o corte epistemológico dos pré-conceitos etnocêntricos. Quem sou eu ? O homem é o mal escatológico que atravessa o céu de bronze. O homem é o jagudi em voos concêntricos. O homem é a hiena que ri. O homem é o pássaro-bombardeiro. O animal alado. O helicanhão. O falo de fogo. O obus catorze. O RPG Sete.
Um homem é apanhado pelo macaréu da história. Apanhado como um cão. Sem glória. E na bolanha de Finete descobre que não há ponte nem salvação, que há terra e céu, mas não há elo de ligação. E que perdeu a memória.
O barqueiro faz contas à vida que custa manga de patacão. O barqueiro conta um conto. O barqueiro de Caronte. Um peso, irmão.
Um homem exorta o soldado a que leve a guerra a peito. É o capitão, medalhado, que irá chegar a oficial general. O fantasma do capitão-diabo, vagueando pelo Cuor. Estatuado, na capital.
Vou no Bissau no barco da Gouveia. Aproveito a maré-cheia e o cacimbo sobre Ponta Varela.
O milícia, número tal, vai morrer, exangue, como a última estrela da manhã. E eu espreito da minha torre de Babel.
Um terceiro homem pára, no semáforo. Vermelho, de sangue. A caminho de Madina/Belel.
2 comentários:
WOW!
UN DIA TENGO QUE VIAJAR A ESOS LUGARES...
ESTOY ENAMORADO DE AFRICA!!
Revisito de tempos a tempos o teu/nosso Africanidades, as tuas vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África visto, sentido, cheirado, apalpado, (red)escrito, fotografado, amado por um grande português do pós-império, meridional, global...
Olha, em troca, deixo-te aqui um poema, uma lengalenga que um dia ouvi a um barqueiro do Geba. Não sei fula, nem mandinga, nem balanta. Mas a língua dos barqueiros não difere de rio para rio, do Geba ao Tejo, e até ao rio da nossa aldeia.
Ao Jorge e ao todos os portugueses errantes, de ontem, de hoje e de amanhã. A todos os barqueiros do mundo. E, por fim, ao senhor barqueiro de Caronte para que, quando nos levar,de vez, na sua barca, nos leve com cuidado, com jeito, não já a gente... acordar.
Conto(s) do barqueiro do Geba
Um homem passa o rio,
a nado.
Um homem atravessa a ponte
sobre o rio.
Um homem cai ao rio,
baleado.
Há uma piroga
no tarrafo.
Metralhada.
E flamingos brancos,
tingidos de vermelho.
Um homem pensa na jigajoga
da vida e da morte.
Um homem olha-se ao espelho.
Um homem porfia,
e nem sempre alcança.
Um homem tem uma crise,
de confiança.
Um homem do norte
camba o rio.
A sul.
A vau.
O Geba Estreito.
Que a última coisa a perder
é a esperança.
Um homem desenha uma ponte,
imaginária,
entre dois pontos de cambança.
Um homem põe-se a pau,
a caminho do Mato Cão.
O inferno em frente,
o rio serpente,
e Lisboa ali tão longe,
tão azul,
tão gregária.
Lisboa, o cais
de Alcântara,
uma multidão de pontos negros,
outra ponte,
outro rio,
saudades a mais.
Um nó na garganta.
Um homem do norte
faz o corte
epistemológico
dos pré-conceitos etnocêntricos.
Quem sou eu ?
O homem é o mal escatológico
que atravessa o céu
de bronze.
O homem é o jagudi
em voos concêntricos.
O homem é a hiena que ri.
O homem é o pássaro-bombardeiro.
O animal alado.
O helicanhão.
O falo de fogo.
O obus catorze.
O RPG Sete.
Um homem é apanhado pelo macaréu
da história.
Apanhado como um cão.
Sem glória.
E na bolanha de Finete
descobre que não há ponte
nem salvação,
que há terra e céu,
mas não há elo de ligação.
E que perdeu a memória.
O barqueiro faz contas
à vida
que custa manga de patacão.
O barqueiro conta um conto.
O barqueiro de Caronte.
Um peso, irmão.
Um homem exorta o soldado
a que leve a guerra a peito.
É o capitão,
medalhado,
que irá chegar a oficial general.
O fantasma do capitão-diabo,
vagueando pelo Cuor.
Estatuado,
na capital.
Vou no Bissau
no barco da Gouveia.
Aproveito a maré-cheia
e o cacimbo sobre Ponta Varela.
O milícia, número tal,
vai morrer,
exangue,
como a última estrela
da manhã.
E eu espreito da minha torre de Babel.
Um terceiro homem pára,
no semáforo.
Vermelho,
de sangue.
A caminho de Madina/Belel.
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2007/03/guin-6374-p1598-contos-do-barqueiro-do.html
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