Confesso que as primeiras noites custam um pouco. Adormecer no meio do nada, sem televisão que nos distraia e sem energia que nos ilumine os medos, não é fácil. Do outro lado da janela, cada pequeno ruído é uma revolução, o apocalipse. O inofensivo gato que passa vira leão faminto. O mosquito malcriado, um dinossauro voador esganado de fome. Com o tempo aprende-se a amar tudo isto e dormir aqui passa a ser uma das melhores coisas do mundo. Relatos de noites que não se esquecem.
Nos melhores "hotéis" do mundo não há vidros duplos a limitar o ruído exterior, apenas uma ordinária cortina e uma rede mosquiteira. Não há sabonetes bonitos e toalhas cheirosas. Nem estrelas classificativas; apenas aquelas que se vêem da janela, ou mais raro, por alguma fresta do telhado a pedir remendo. Os melhores hotéis do mundo ficam em África, nas aldeias distantes de tudo, onde apenas chegam três tipos de gente: os que lá habitam, os missionários e os loucos de costas rijas que aguentem os buracos da picada.
Nestes hotéis, o verdadeiro luxo é ter um balde com água limpa, para lavar o corpo e refrescar a alma. E uma rede em torno da cama, que nos faça rir dos mosquitos que zombem lá fora. Tudo isto!
Ando desde Junho pela Europa, dormindo em camas 3 estrelas de lençóis alvos e chocolate na almofada. Em nenhum deles este “hippie higienizado” (de cabelo curto, que não fuma droga e é católico) encontrou o que existe nas missões espalhadas por África: uma singeleza aparatosa. Um luxo despojado de tudo. Casas construídas por gente que descobriu que o melhor ar-condicionado é a corrente de ar. Nos dias em que a humidade e o calor tiram a vontade de viver, abrem-se duas janelas e instala-se a cama bem no meio. A brisa transforma o mais quente, ensopado e insuportável serão africano na mais amena das madrugadas.
Vem-me hoje à lembrança, enquanto teclo num desses quartos de hotel europeu, as dezenas de dormidas acumuladas no silêncio desinquieto de África. Sempre igual, a “noite” começa com o desligar do gerador. No exacto momento em que o tam-tam-tam matemático e gasólico se apaga, o tam-tam-tam dos tambores toma conta das trevas, como que iluminando-as. E, então, a escura e sofrida noite transforma-se em festa. Dos ratos que dançam nos entre-forros da casa, das hienas que riem ao longe e dos triliões de cigarras que nos embalam os sonhos!
NOTA A EVENTUAIS VIAJANTES: as missões (católicas ou outras) no geral não recebem turistas. Assim, não convém aparecer sem antes haver sido feito um contacto prévio. Naturalmente que em caso de necessidade são sempre um porto seguro, onde buscar ajuda.
20.9.07
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3 comentários:
Ai... que saudades... da missões, das casas de passagem, das casas dos professores... desses lugares onde somos embalados por outros confortos. Ando há anos a tentar explicar esse sentimento aos meus amigos de cá e não consigo... acho que é preciso mesmo experimentar e ganhar essa serenidade que nos faz encarar os insectos, os ratos, os ruídos da noite como inofensivos e valorizar o ambiente à nossa volta.
Obrigada por me relembrares isto :)
Excelente descrição das noites no mato africano, caro Jorge Rosmaninho. Uma das mais gratas recordações que tenho da minha passagem por Angola é o (não conseguir) adormecer ao som dos tambores, vindo de um ou mais batuques realizados algures, e trazido pelo vento juntamente com o canto das cigarras. Não me considero masoquista, mas eu gostava imenso que os tambores não me deixassem dormir... Ficava a ouvir os seus ritmos noite fora, até que o sono me vencesse de vez.
Entretanto, no tecto do quarto, as osgas iam comendo os mosquitos que se atrevessem a pousar. De uma maneira geral, os mosquitos eram comidos por elas antes de terem a oportunidade de me picar, para meu grande alívio.
P.S. - Ouvi há dias, na BBC (rádio) em inglês, a mais entusiástica referência ao povo da Guiné-Bissau que se pode imaginar. Uma correspondente da emissora em Dakar foi pela primeira vez a Bissau e ficou extasiada com o calor humano e a hospitalidade de que foi alvo por parte do povo guineense. Ela desfez-se em elogios e jurou voltar à Guiné mais vezes.
E nós aqui nas pensões em Lisboa temos tudo.
Tudo, até não querer mais.
A poluição, o fumo dos carros dos autocarros o cheiro à gasóleo, o pó negro que entranha dentro dos quartos, va-la, temos o que os outros não têm, muita poluição. Os outros têm o que nós precisamos : um arzinho puro para respirarmos.
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