13.5.08

GUARDADOR DE PECADOS

A corda atravessada no meio da estrada denuncia que chegámos ao fim do país. 10 minutos e umas buzinadelas depois de termos parado o motor do carro, um militar surge de uma vereda, montado numa bicicleta. Os chinelos plásticos amarelos que traz calçados e as calças de camuflado arregaçadas até aos joelhos dão-lhe um ar bizarro e retiram-lhe seriedade.

A personagem que se aproxima de nós é a autoridade máxima neste pedaço de estrada situado já um pouco depois do fim do mundo, aqui onde o Fouta Djalon se deita de mansinho, antes de adormecer no mar. Transporta aos ombros – nos dois galões de sargento – todo o peso, toda a responsabilidade de ser o representante legal da instituição “Republique de la Guinée”. Todo o poder do povo e do Estado. Das leis e das injustiças. Da democracia e dos abusos do poder totalitário.

A continência que faz, acompanhada de um bater de chinelo direito no chão e de um sorriso do tamanho da importância do cargo que desempenha, dão-me a entender que será fácil sair da Guiné e entrar na Guiné-Bissau.

Estamos nenhures, entre Boke (no norte da Guiné) e o Quebo (no sul da Guiné-Bissau), numa picada terciária onde o movimento quotidiano se resume a um land cruiser de transporte público que liga as duas cidades: vai hoje, regressa amanhã. A alegria do militar está por isso justificada: não é todos os dias que caras novas entram ou saem do “seu” território.

Cumprimentos efectuados seguem-se as três perguntas sagradas de qualquer fronteira de país marcado pelas regras vermelhas da estupidez política: quem és, de onde vens, para onde vais. No caso deste sargento, uma outra pergunta impôs-se, substituindo a tradicional quarta pergunta “o que trazes para mim?”.

Assim, de sorriso nos lábios, a última pergunta surgiu inesperada e maliciosa: “quando regressam?”

Para ganhar tempo, porque percebi de imediato que as formalidades estavam tratadas (nem os passaportes o senhor nos pediu), fui directo ao assunto:

- Diga lá o que quer que lhe traga. Mas olhe que isto está mau…

- Traz-me uma garrafa de “rouge” (vinho tinto).

Notei no ar malandro do homem que havia gato escondido com rabo de fora. Entrei no jogo:

- Ah, então o senhor não é muçulmano!... Se bebe alcool…

- Olha lá… Estou aqui no meio do mato… Deixa lá isso da religião!

Rimos os dois e acordamos uma garrafa de vinho português para o dia do regresso. A corda baixa-se para a nossa passagem. Aos solavancos, já em território bissau-guineense, peço a Deus que meta o pecado deste militar na minha conta-corrente. Guardo na folha de caixa que tenho junto do Todo-Poderoso a humana falha deste homem. Por reconhecimento à sua simpatia e por me ter deixado sair do seu país.

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Kouremale, entre a Guiné e o Mali

ADENDA: Atravessar fronteiras em África nem sempre é fácil. Implica alguma diplomacia, um certo “savoir-faire” que permita convencer a(s) autoridade(s) fronteiriça(s) a deixar-nos sair ou entrar no “seu” (o sentimento de posse, aqui, é muito importante) território.

Não querendo ser pretencioso, reconheço que o tempo e as algumas centenas de passagens de um lado para o outro das cancelas (ou simplesmente das cordas) me deram traquejo na forma de gerir as regras sagradas do “atravessamento de fronteiras”.

A primeira dessas regras é "não ter pressa". Um homem com pressa, num destes locais, é um homem sem dinheiro, pois o acelerar de procedimentos custa caro. A segunda é nunca mostrar medo da autoridade. Quando um militar africano se apercebe que um estrangeiro treme, é certo e sabido que aproveita. O rol de regras, que trago coladas ao tablié da viatura e que releio sempre que uma fronteira se aproxima, é longo. Fico-me por aqui e entro no essencial da coisa: “o direito de passagem”.

O direito de passagem (também conhecido por cadeaux, droit de tampon, sumo, cola ou fim-de-semana) é uma franquia negociável entre a autoridade e o indivíduo que pretende passar a fronteira. Pode ser paga em dinheiro ou em espécie e é obrigatória na maioria das fronteiras africanas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Saber viver em qualquer parte do mundo, é sempre uma ciência.

Saber viver nesta parte do mundo, será AFRICANOLOGIA?

Este post, pareceu uma aula por correspondência, dessa tal ciência.

Não deve ser fácil concluir este curso.!!!

Mas deve ser interessantíssimo.