4.8.08

UM ÚLTIMO OBRIGADO

As plantas dos meus pés são de geografia fácil e as costas pouco exigentes. Vou a qualquer lado e durmo em qualquer cama. Até no chão, a mais espaçosa de todas. No entanto, nesta vida de andarilho há uma coisa que não se dispensa nunca: alguém que trate de nós.

Quanto vale chegar a um lugar desconhecido, depois de umas valentes horas de estrada, e ter uma cama feita com uma rede mosquiteira branca a protegê-la, um balde de água limpa para tomar banho e uma vela para iluminar os fantasmas da noite? Muito. Se juntarmos a isto uma mamã perguntando-nos se preferimos peixe ou carne para o jantar… Talvez só o céu seja melhor!

Emma é nome de mãe. Não sei porquê, mas soa a lençois lavados, batatas fritas, carícias e beijos de boa noite. A mãe Emma – que se me apresenta como coordenadora do orfanato onde me acolho – tem ar disso mesmo, de mãe. Ancas largas, seios fartos e corpo de muitos quilos. E tem filhos que nunca mais acabam. Uns dela e outros do orfanato que dirige. Rapazes e raparigas a quem a guerra tirou os pais e que se exibem para mim, amarinhando por ela acima e agarrando-se-lhe ao pescoço, aos beijos. Feita a demonstração de amor, as quase 30 crianças e jovens dão-me as boas-vindas oficiais, em uníssono e de mãos atrás das costas, envergonhados…

Agradeço e vou tomar banho, antes que a noite caia. Segue-se o jantar. Fish and chips, servido pelos filhos (homens) que aqui não há lugar aos machismos típicos da sociedade africana. No final, mesa levantada e loiça lavada pelos mesmos rapazes: o David, que quer ser advogado, e o Sorey, que sonha com contabilidade.

À noite, antes de deitar, a última pergunta desta minha mãe por umas horas:

- O que quer para o pequeno almoço? Feijão com ovos? Café?
Esfrego os olhos, cansados da jornada… Estou no Ritz de Paris ou num orfanato da Serra Leoa?

- Nada, obrigado. – respondo – Apenas bananas e mancarra. Para a viagem!

A mãe Emma serve-me de metáfora às mães que têm tratado de mim nestes muitos quilómetros de estradas e picadas africanas. E foram muitas. A todas elas, muito obrigado. Obrigado em especial às minhas três mães de verdade, as de sangue, paixão e coração, que me criaram e criam com beijos e papas de leite, muitas vezes enviados por telefone ou apenas pelas correntes de ar que se passeiam por aí vagabundas – como eu – e me acompanham para onde quer que vá: Ana, Adelaide e Cláudia.

FIM DE LINHA

O retrovisor dá-me a perspectiva do que está para trás, do que vai ficando distante, submerso na lama dos dias ou difuso na poeira dos arquivos. Do que não se torna a ver.

AFRICANIDADES foi o que foi, uma estrada de pensamentos que saltavam dos dedos directamente para a rede - sem censura - muitas vezes enlameados devido à chuva, outras empoeirados por causa do sol, tal como a meteorologia que nos aquece e alegra os dias. Vamos embora no melhor da festa, mas a vida é assim mesmo, nem sempre se pode ficar até ao fim. Obrigado às pouco mais de 300 mil visitas pela paciência de ir passando e nos ir lendo ao longo destes cinco anos. Obrigado aos bissau-guineenses que tão bem nos acolheram. Boa sorte Guiné-Bissau. Até sempre!

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3.8.08

GUINÉ-BISSAU -- UMA VISÃO

A "Sombra do Pau Torto", texto biográfico do Eng. Carlos Schwarz, "Pepito". Uma preciosa ajuda para (tentar) perceber este pequeno e turbulento (mas maravilhoso) país.

A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER (A POPULAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU)

Regresso ao discurso de Bento XVI nas Nações Unidas, em Abril de 2008. Nele o Papa fez importantes declarações de princípio que – estou convencido – marcarão no futuro as relações internacionais.

Entre essas declarações destaco o princípio da “responsabilidade de proteger”. Referia o Papa que o dever de proteger os Direitos Humanos não compete só a cada Estado, mas também à comunidade internacional: “todo o Estado tem o dever primário de proteger a própria população de violações graves e contínuas dos Direitos Humanos (…). Se os Estados não são capazes de garantir essa protecção, a comunidade Internacional deve intervir”, disse o Santo Padre. Ao afirmar o princípio da “responsabilidade de proteger” Bento XVI referia-se (não em exclusivo) às crises vividas no Zimbabue, Darfur e Myanmar, onde as autoridades falharam no seu “dever de proteger”.

Não sendo especialista em relações internacionais, arrico-me a transpor esta declaração de princípio de Bento XVI para a Guiné-Bissau, que a comunidade internacional tem usado como laboratório de ensaios, numa lógica de intervenção ambígua que mais não fez que adiar o problema (a efectiva reforma das Forças Armadas). A verdadeira intervenção, para efectivamente proteger a população guineense, está por fazer. Tudo o que até aqui foi realizado pouco mais foram que boas vontades propagandeadas na TV e algum dinheiro anunciado, que nunca chega a entrar no país (fica em estudos e consultorias). [Um parentesis para abordar uma informação (cuja veracidade não posso confirmar, mas que circula nos meios jornalísticos de Bissau) que a ser correcta exemplifica isso mesmo. Do milhão de dólares prometido pela comunidade internacional para a construção da prisão de alta-segurança (que tanta falta faz) sobrarão – após estudos e consultorias – 200 mil dólares.]

A última dessas experiências de laboratório é a Missão da União Europeia para apoio às reformas na Defesa e Segurança. O general Verastegui, que a coordena, demonstrou já – com uma franqueza e um pragmatismo só possíveis num militar – não acreditar que o trabalho que dirige dê frutos. Verastegui percebeu que as forças armadas guineenses são ingovernáveis, vivem à margem da lei e auto-regulam-se anarquicamente a si próprias, recusando submeter-se ao poder do Estado (existe ele?) e às demandas da comunidade Internacional.

O que se está a passar na Guiné-Bissau (não apenas agora, há 30 anos) é uma tragédia que precisa de um ponto final e não de reticências como as que a comunidade internacional tem vindo a despejar. E esse ponto final (parágrafo) tem que vir de uma intervenção militar que proteja a população guineense… das suas Forças Armadas, que a mantém refém da paz e do desenvolvimento.

Cabe à comunidade internacional colocar fim à situação insustentável que se vive na Guiné-Bissau e que as notícias do tráfico de droga dos últimos dias têm demonstrado.

Acabo de regressar da Serra Leoa, um país que após muitos anos de guerra civil está a conseguir levantar-se. A esse facto não é alheio a presença de militares britânicos (IMATT), cujo objectivo é reestruturar as Forças Armadas serra leonesas, de forma a que se tornem uma força sustentável, com a qual o país possa contar.

A força britânica não anda na Serra Leoa a caçar fantasmas (o que temem muitos políticos e militares guineenses) nem ameaça a soberania do país (como temem tantos cidadãos guineenses). A sua presença é, só por si, dissuasora de tentativas de subverter a ordem democrática e o “bem-comum” em que acenta o processo de desenvolvimento.

Só com uma intervenção semelhante a Guiné-Bissau conseguirá libertar-se das amarras a que está presa. Por que espera a comunidade internacional? O momento é o mais oportuno possível.

ADENDA: naturalmente não advogo a presença de militares portugueses numa tal força. Descansem os mais cépticos, pois não sofro de neo-colonialite! CEDEAO, se fosse possível (não acredito) a via diplomática, de consenso. Angola, por uma via menos diplomática, mais musculada? Porque não?

A MENTIRA

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À terceira insistência os joelhos começaram a tremer. Se este tipo me pergunta uma vez mais a profissão vai descobrir que estou a mentir!

- Vous faites quoi? – perguntou o oficial de migração de cabelo à escovinha e bigodinho espigado inquiridor.
- Professor.
- Professor?! De certeza. Não és jornalista nem funcionário dessas organizações humanitárias que andam para aí? – E analisando as 32 páginas do passaporte, quase todas carimbadas, acrescentou desconfiado:
– Viajas muito, para professor…
- Tenho muitas férias… Sou professor em Bissau e regresso a Lisboa por terra para ter a oportunidade de conhecer o seu país. Dizem que é muito bonito…
- Jornalista... não? Nem pouco mais ou menos?

O homem deu-se por contente com a resposta sonsa e carimbou o passaporte sem fazer mais perguntas. Ainda bem para mim. Ser detido para “apuramente da verdade” no bunker préfabricado que demarca o início e o fim de… Marrocos não deve ser a coisa mais agradável do mundo. A paisagem lunar envolvente – rocha e areia –, os 40 graus de temperatura e os dealers que se juntam neste local a traficar, sob o olhar cúmplice das autoridades, todo o tipo de bens (droga, tabaco e automóveis roubados na Europa, por exemplo), fazem-me sempre desejar sair dali o mais rapidamente possível.

Era a terceira vez que entrava no território ocupado do Sahara Ocidental, vindo de Noahdibhou, na Mauritânia. Esta passagem pelo território que Marrocos ocupa e que a Polisário reclama tinha um sabor diferente, a risco e desafio. Havia estabelecido contacto com duas pessoas ligadas à Polisário para uma conversa e eventual entrevista em El Ayun, capital da região.

Entro na sete place, juntamente com outros oito passageiros (sete place, na Mauritânia, é metáfora para neuf place) e seguimos viagem para Dahkla, a mais bonita cidade do Sahara Ocidental.

2.8.08

VERY VERY BRITISH... REALLY BRITISH!

Não costumo andar a espreitar o que dizem os autocolantes das sanitas que os canalizadores insistem em deixar colados à mesma na altura da montagem de qualquer casa de banho (porque será!?)... mas não pude deixar de reparar neste!

Em Inglaterra existe um "Conselho da Casa de Banho", que vela pela aplicação das normas ecológicas na execução dos equipamentos das mesmas. Tem director e tudo! O que escreverá o senhor nos cartões de visita?

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ESTADO... DE ESPÍRITO

Começa a ser notória a falta de vontade, por parte de todos os actores políticos bissau-guineenses, para a realização de eleições legislativas em Novembro. O PRS não quer, pois sabe que as hipóteses de ganhar são pequenas. O PAIGC não lhe interessa porque não tem a certeza se ganha. Aos membros do actual governo dá-lhes jeito ficar mais uns meses, pois sempre vai pingando qualquer coisa. Os militares não querem perder o poder que detém, que um governo legítimado por um escrutínio poderia ameaçar. O presidente Nino está refém de todos os actores enumerados anteriormente e analisa os dados para perceber como pode sobreviver (políticamente)...

Face a todo este embróglio e face a isto, isto, isto e isto, não me admirava que uma destas manhãs Bissau acordasse com mais uma sublevação militar, intentona ou mesmo golpe. Há tanto tempo que não acontece nada!

CUSAS DI BRANCO III - TUDO 'TOMÁTICO

Uma amiga residente em Bissau importou mobiliário do IKEA. No dia da instalação, chamou a cozinheira para ajudar na montagem do Lego para adultos. A senhora, advertindo que não era carpinteira, pouco crente que conseguisse ajudar a patroa, lá foi.

Quando retiradas das caixas as pranchas, os pregos e tudo o resto, M., vendo que os móveis quase se construíam sozinhos, soltou um xiiiiiii de espanto, e não contendo a admiração exclamou no seu melhor semi-português:

- Cusa di brancu… I tudo ‘tomático!

CUSAS DI BRANCU II - IRÃN DI BRANCU

Certo dia na Guiné-Bissau fui dar com este espectáculo. Um amigo instalando uma lâmpada com célula foto-voltaica, daquelas que acendem quando alguém lhes passa por perto. Ao testá-la, aparece um dos empregados da casa, que logo foi chamado a servir de cobaia para teste.

- S., avança até ao fundo do corredor, por favor.

Ao passar perto da lâmpada e vendo que ela acendia sozinha, S. deu uma gargalhada nervosa, sem saber se a coisa tinha mesmo graça ou se tratava de algum feitiço.

- Xiiii, Irãn (Deus, divindade) di brancu!... – exclamou.

CUSAS DI BRANCU* I - GPS PESSOAL

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Uma estória passada comigo e duas com amigos, que servem para demonstrar como por vezes é engraçado trabalhar, em África, com produtos importados. Espero que as "sensibilidades mais sensíveis" que por aqui passam de quando em vez não vejam nelas fantasmas de troça maldosa. São apenas estórias engraçadas, que acontecem a qualquer um de nós quando perante factos/coisas/invenções inesperadas.

Estória 1, GPS Pessoal – Niankoei é mais que um motorista. È um companheiro de viagem de excepção, que, de vez em quando, por acaso, me conduz pelas estradas e picadas da costa ocidental africana.

O seu maior handicap é não saber ler nem escrever, mas compensa essa falha com uma memória de fazer inveja a muitos doutores, arquitectos e engenheiros. Conhece de cor as estradas e as picadas de quatro países, as barracas onde se come o melhor cabrito, o melhor arroz de peixe ou a melhor sopa de macaco; em que localidades e a que congregação e/ou confissão religiosa pertencem as mais simpáticas missões… Niankoei guarda muitos terabytes de informação na sua cabeça, onde ainda sobra espaço para as distâncias quilométricas entre as localidades. É uma espécie de GPS de carne e osso.

Às vezes, para quebrar a monotonia de horas seguidas de estrada, abro o mapa. Nessas alturas Niankoei coloca sempre um olhar aborrecido, quase desconfiado e cerra os olhos um pouco mais, fingindo que olha a estrada mais atentamente que de costume. Quando eu, somando os troços de estrada, lhe comunico que de A a B são, por exemplo, 137 km, Niankoei tem sempre uma achega a dar:

- 139! – diz de forma seca e irritada, como se os dois quilómetros de diferença pudessem fazer tombar o mundo.

Às vezes meto-me com ele e pergunto de onde até onde foi efectuada a sua contagem. Niankoei nunca hesita na resposta:

- Da estação Total do local X até ao cruzamento da mesquita do local Y!

Um destes dias assegurei-lhe que ele era melhor que um GPS. Olhou-me absorto, sem saber se a frase era elogio ou crítica. Lá lhe expliquei que no norte do mundo há uns aparelhinhos pequeninos que nos indicam por onde ir, quantos quilómetros são, os restaurantes do caminho, etc…

Niankoei olhou para mim, mais desconfiado que nunca:

- O quê?!?!

- Sim, é verdade. – reforcei, para que não julgasse que estava a mentir.

- Vocês brancos inventam com cada coisa. – concluiu com desprezo.

* Do crioulo guineense, "coisas de branco", expressão que indica (não só mas também) as invenções tecnológicas trazidas da "tera di brancu".

1.8.08

ESTORIA DE UMA MENTIRA

Estória de Luis de Vega, jornalista espanhol, que foi enganado quando tentava fazer a reportagem de uma saída de emigrantes clandestinos no norte do Senegal. Responsabilidade e ética na não publicação da (não) estória, no ABC. Só não acreditamos que Luis de Vega se tenha safado sem pagar a quantia devida aos mafiosos que lhe arranjaram aquela que poderia ter sido a CACHA da altura na imprensa espanhola.

Luís de Vega é correspondente do diário ABC em Rabat, Marrocos.