29.1.08

SERRA LEOA: PÓ, DIAMANTES E PILOTOS DE CADEIRAS

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A capital do país, Freetown, presta-se a jogos de palavras. A liberdade que transpira do “Free” é um embuste. Freetown é um vocábulo de sentido renegado e contrafeito. Podia dar mil e uma imagens para provar esta mentira etimológica. Fico-me apenas por uma, que se me colou à retina e não consegui fotografar. Já lá chego...

As ruas de Freetown são um carrossel de alcatrão, buracos e pó. Muito pó. Pó de poeira e pó de escape de automóvel. Serpenteiam as colinas onde a cidade se ergue, estas ruas. São estreitas, apertadas, mas nela cabem lado a lado todos os automóveis que a teimosia humana conseguir lá enfiar: os que sobem a rua, os que descem a rua e os que se prostram, estacionados, de um lado e de outro da rua. No meio deste caos que dura 16 horas, das 24 que tem um dia, há motos, peões e animais que gincanam a babel automobilística de improvável desentupimento.

E há uns miúdos especiais, que descem em cadeiras de rodas, manhã cedo, as colinas de Freetown. A 60 à hora, atropelando galinhas, pisando peões, quebrando retrovisores e riscando pinturas riscadas de carros velhos e estafados, estes pilotos sem volante desafiam trânsito e buracos, bem instalados nas suas máquinas roladoras. Foram estes miúdos que me explicaram Freetown e que me disseram que, afinal, a única liberdade que aqui existe é a deles, no preciso e exacto momento em que deslizam colina abaixo com as t-shirts esburacadas a adejar ao vento.

São mutilados de guerra. Faltam-lhes braços e pernas, decepadas por minas ou cortadas por instrumentos afiados. O ódio que polvilhou os dias da guerra da Serra Leoa (e da Libéria, ali ao lado) tinha um brilho e uma dureza especial, como a extremidade dos instrumentos que deceparam as pernas e os braços destes adolescentes pilotos de cadeiras de rodas: o brilho do diamante, o mais duro de todos os minerais e o único capaz de se cortar a si próprio e tudo o resto no mundo. Mesmo pernas e braços.

A corrida tem um objectivo particular. Lá em baixo, onde ficam os bancos, há dinheiro nas carteiras de quem usa carteira e vai ao banco. Quem primeiro chegar, primeiro começa a arrecadar as moedas que lhes permitirão, ao fim do dia, pagar a subida da colina. Aí não haverá força da gravidade para dar ligeireza e vertigem à viagem. Ser empurrado, colina acima, ao final da tarde, devolverá a Freetown a mentira penosa e dura que ela é. A liberdade ainda não chegou. A guerra ainda não acabou. Recomeça todas as tardes, quando estes jovens voltam a casa empurrados por quem tem braços e pernas para subir a colina.

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá JR! ao ler a tua descrição, só pensava na imagem que foi passada pela ficção, no filme, Diamantes de Sangue! Chorei baba e ranho. Mas credito q a realidade consegue ser pior. Até nos doi a dor deles, né? Por acaso pensei q esse país já estivesse mto melhor, ja que passou a guerra e ainda sobraram diamantes para recuperar a economia e crescer de forma saudavel, recompensado os mutilados dessa desgraça que não foi só fisica...
Mil sorrisos!

Semdiamantes.

African Queen disse...

Que belo texto Jorge. Obrigada! É sempre um prazer vir aqui ler o que os teus olhos veem e o teu coração sente. Quando as referências me são familiares despertas-me a saudade e as memórias, quando são de lugares que não conheço, como hoje, abres-me uma janela nova :)

Carol disse...

Parabéns pelo texto interessante e sensível.