Para uma realidade forte, palavras a condizer. Não há outra maneira de classificar estas crianças. São o que são, sem eventuais adjectivos que aligeirem a sua condição. Filhos de putas. Flashes de uma visita (matinal) ao bordel.
Deixemos, por agora, a casa torta de bancô (tijolos de terra secos ao sol). Deixemos a estrada e a cancela que demarca o fim (e o início) da cidade grande, uns metros acima, onde estacionam camionistas, militares, polícias, vendedores, viajantes. Nada disso interessa, por agora. Fixemo-nos nestas nove crianças, alinhadas num banco corrido, de madeira, tão torto como a parede que lhes serve de encosto. E, no entanto, mais direito que as suas vidas. Os olhos, pequeninos, devem ser escuros e redondos, como todos os olhos de crianças africanas. Adivinho-o, pois não os vi. Desde que cheguei, esses olhos cairam no chão de lodo viscoso de início de estação de chuvas e não mais se levantaram. Não sei se por vergonha, se para disfarçar a atenção que prestavam à conversa que a ama tinha comigo.
Passemos então para a mulher que está ao lado delas. Toma conta das crianças durante o dia, quando as mães se repousam. E durante a noite também, quando as mães se vendem em colchões fétidos de palha e desgraça.
De cigarro na mão, esta antiga prostituta, bem disposta, fala de tudo com uma abertura que me deixa espantado. É velha, muito velha. E gorda, muito muito muito gorda, como se todos os homens com quem se deitou lhe tivessem oferecido um pedaço de si. Está “reformada”. “Já não tenho corpo nem paciência para andanças do diabo”, justifica-se. Por isso ajuda as outras mulheres – “mais novas e mais pacientes” – tomando-lhes conta dos filhos. Pagam-lhe “pouco”, mas pagam. “Temos que ser umas para as outras.”
Abertamente responde a todas as questões que lhe coloco. Sem hesitações, sem silêncios, sem palavras dúbias que disfarcem a verdade das vidas que ali se vivem. Responde alto, com voz de fêmea decidida, para que as crianças, ao seu lado, oiçam bem com que gestos se foge à fome e se abraça a miséria.
“1.000 francos (1,5 €) para uma meia-hora. 7.500 para uma noite. 5000 francos de suplemento se o cliente não quiser usar preservativo.” E continua, ainda mais alto, em desafio às leis de bom-senso ditadas por quem come três vezes ao dia:
“Mon frère, isto aqui é assim… que estas crianças têm que comer! Achas que podemos pensar nessas coisas da prevenção?... Sabes qual é a nossa doença? A única de que temos medo? O senhorio. Se de manhã não pagas os 1000 francos do quarto és posto na rua. E se vais para a rua acabou-se o trabalho. Percebes? Essa coisa do ‘capot’ é para quem tem um mínimo. Nós aqui é o dia a dia. Percebes?”
Percebo. De forma tão clara como as crianças. E a senhora explica-se com a facilidade de uma professora primária. Por isso fico-me por aqui nas perguntas e peço para entrar no bordel.
Um pátio de gente tosca que desperta para o dia. Quatro paredes toscas que delimitam o espaço. 9 toscas portas de lata, que encobrem pudores de outros tantos toscos quartos. Prostitutas ensonadas espregicando-se surpreendidas. Cliente?! Que não, fiquem descansadas, não lhes vim dar trabalho a horas tão indecendentes. Que se quiser é só dizer, que aqui não há folgas e até a manhã mais ensolarada pode ser transformada na noite mais escura, para que ninguém veja ou saiba!
Despeço-me e subo a rua até à estrada, até à cancela que delimita o fim e o início da cidade grande. Demoro-me uns minutos a analisar a fauna que por ali pulula: camionistas, militares, polícias, vendedores, viajantes… Entro no carro e desando, sem aparente revolta. Nem as putas nem os seus filhos vão morrer de fome...
6.5.08
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